terça-feira, 31 de março de 2009

Filme do mês - Abril

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O Lusografias inaugura uma nova secção, uma proposta das professoras Auxília Ramos e Ivone Rebelo. Para este mês, a sugestão recaiu sobre um dos melhores filmes deste ano, O leitor, do premiado director de As Horas, Stephen Daldry.
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Um pormenor, um “segredo” pode condenar ou ilibar de acusação?
A verdade de cada um é ou não sentida como culpa?
Devemos julgar ou entender?
“Até que ponto podemos estar enganados?”
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São algumas das questões que o filme coloca e que, sobejamente, foram tratadas, exploradas, dissecadas pelos mais diversos especialistas em crítica de cinema, ou em juízos filosóficos e moralistas.
Não é disso que queremos falar, mas daquilo que, verdadeiramente, mais nos arrebatou e nos deixou enlevadas ao ver o filme: a força, o poder, o magnetismo, a magia da literatura, das palavras lidas ou escutadas, como se fossem uma melodia. É esse, para além de outros, um dos grandes motivos do filme: a leitura, associada ao poder redentor do “leitor”.
É esta mensagem que queremos partilhar e que o filme transmite, num cenário que evoca o holocausto nazi e com um enredo amoroso que subverte todas os padrões do convencional. Os livros, a literatura, a leitura, ganham primazia relativamente aos restantes acontecimentos e, progressivamente, vamo-nos deixando possuir por esta grande força: a leitura pode salvar, redimir, sublimar os mais reprimidos e contraditórios sentimentos.
E, então, lembrámo-nos de Jorge Luís Borges que referia, naquele seu habitual tom de provocação, que “há aqueles que não podem imaginar um mundo sem pássaros; há aqueles que não podem imaginar um mundo sem água; ao que me refere, sou incapaz de imaginar um mundo sem livros.” Ao recordá-lo, diremos: não poderíamos ficar de igual modo fascinadas pelo filme sem a presença poderosa da literatura e do seu suporte material, os livros.
No filme, eles são uma presença constante, um outro protagonista, e geram, no desenrolar da acção, forças tão contrárias como distanciar ou aproximar, salvar ou ajudar a morrer…
Auxilia Ramos, Ivone Rebelo

segunda-feira, 30 de março de 2009

"A choldra ignóbil" ou o Portugal de Eça

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Na revista Pública deste Domingo, a crónica de José Eduardo Agualusa evoca Eça e a sua obra-prima, Os Maias, através de João da Ega. Tudo a propósito do gosto dos portugueses em maldizer o seu próprio país:
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A relação dos portugueses com Portugal é um pouco assim. Desvirtuar o país, comparando-o com a suposta grandeza de outros, faz parte, desde há gerações, da cultura nacional.
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Suponho que para um estrangeiro isto possa confundir-se com desamor. Grave equívoco: para um português, maldizer a pátria é uma forma superior de patriotismo.
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Tudo isto está n' Os Maias. Aliás, o que de mais profundo sei sobre Portugal aprendi com Eça de Queiroz. Oiçamos João da Ega, cruel alter ego do autor: "Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima com os direitos da alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas... Nós julgamo-nos civilizados como os negros de S. Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão... Isto é uma choldra torpe."
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Uma outra personagem vai mais longe: "Querem dizer agora que isto por fim não é pior que a Bulgária. Histórias! Nunca houve uma choldra assim no universo!"
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E no entanto, a determinada altura, o próprio Ega reconsidera, num súbito entusiasmo nacionalista: "Clamamos por aí, em botequins e livros, 'que o país é uma choldra'. Mas que diabo! Porque é que não trabalhamos para o refundir, o refazer ao nosso gosto e pelo molde perfeito das nossas ideias?... Vossa excelência não conhece este país, minha senhora. É admirável! É uma pouca de cera inerte de primeira qualidade. A questão toda está em quem a trabalha. Até aqui a cera tem estado em mãos brutas, banais, toscas, reles, rotineiras... É necessário pô-la em mãos de artistas, nas nossas. Vamos fazer disto um bijou!"
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Portugal já é um bijou. Lisboa, em particular, tem vindo a transformar-se numa das cidades mais simpáticas da Europa. Em primeiro lugar há a luz: uma matéria suave e perfumada, que apazigua o espírito. Desembarcar no aeroporto da Portela, numa manhã de Inverno, vindo de uma qualquer cidade europeia mais a norte, é como emergir de um poço de águas escuras. A mim, a luz devolve-me a respiração.
José Eduardo Agualusa, in Pública

domingo, 22 de março de 2009

21 de Março - Dia Mundial da Poesia

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Entrega os lábios ao poema. Eu nunca serei o único
pastor do teu silêncio (...).
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José Rui Teixeira, Para Morrer

sexta-feira, 6 de março de 2009

António Lobo Antunes (sobre os jornais)

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Deixo o editorial de Lobo Antunes, no Público, no dia do 19ºAniversário do jornal:
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"Em criança (e em adolescente, e em adulto) não havia jornais na minha casa mas havia jornais nas casas da minha família. Na do meu avô paterno lembro-me do Debate, monárquico, impossível de ler porque estava sempre dobrado e com a cinta posta. Na do meu tio Elói, aí sim, abertos, os semanários da sua terra, o Ecos de Pombal e o Notícias de Pombal.
Na secção necrológica do Ecos li uma ocasião uma notícia que começava assim: faleceu oportunamente no Brasil o senhor Fulano de Tal, tio do nosso estimado amigo Não Sei Quê Não Sei Quê. Na do meu outro avô, em Nelas, era o Diário de Notícias, que chegava no comboio da meia-noite e trazíamos, de bicicleta, da estação. O meu outro avô, de casaco de linho branco, passava horas a lê-lo na varanda para a serra. Depois do casaco de linho morrer a minha avó substituiu o Diário de Notícias pelo Almanaque da Sãozinha, cheio dos milagres da dita, relatados por crentes agradecidos. Num desses prodígios uma senhora contava que, de pobre que era, olhava em lágrimas as panelas vazias do almoço. Veio-lhe a Sãozinha à ideia, rezou com empenho, entrou-lhe de imediato uma lebre pela cozinha dentro, fechou a cozinha, matou a lebre à paulada e regalou-se a comer prodígio divino de cabidela. Confesso que esta dádiva da Sãozinha me fez um bocado de impressão, ao imaginar o assassinato do bicho. Até ao fim da sua vida a pagela da santa dos roedores ocupou um lugar importante no oratório da minha avó: uma adolescente de aspecto virtuoso, cheia de medalhas, que ofereceu a sua existência terrena em troca da conversão dos pais. Jesus fez-lhe a vontade arrebatando-a, estou a citar, ao nosso convívio, e os pais incréus descobriram o Altíssimo que, mesmo através da cabidela e do fricassé, se manifesta à gente, ou não mesmo, de preferência através da cabidela e do fricassé, misturando o Céu com o micro-ondas e os mandamentos com batatinhas salteadas.
Na ideia de entender o interesse do meu outro avô pelo Diário de Notícias comecei a folheá-lo, não era aos quadradinhos e portanto aborreceu-me. Troquei-o por pilhas antigas das Selecções do Reader's Digest em que achei nacos de prosa fascinantes: "Encontrei o Amor no Hospital Ortopédico", "Eu Sou o Testículo de João", "Ao Ficar Cega a Sua Existência Ganhou Sentido". Mais tarde A Bola e o Record, sobretudo A Bola onde trabalhavam grandes jornalistas
(Carlos Pinhão, Aurélio Márcio, Vítor Serpa, as extraordinárias reportagens da Volta à França de Carlos Miranda que bem mereciam estar reunidas em livro e nada devem às de Antoine Blodin) e quando esta geração deixou de escrever eu fui deixando de ler. Ao PÚBLICO devo o ter começado a ensaiar prosinhas em forma de crónica, graças ao convite de Vicente Jorge Silva, que eu não conhecia e me convidou para o suplemento dos domingos, salvando-me, porque a editora, à época, não pagava, de vender Bordas de Água nas pastelarias ou arrumar automóveis
- Trôça, troça
na zona do Saldanha, a coçar a magreza com o debrum preto das unhas. Agora não leio jornais: vejo o teletexto, a única coisa, aliás, que vejo na televisão desde que o futebol deixou de ser um desporto, a política uma ocupação digna e a cultura se transformou em banalidades veementes, uma estrebaria de porta aberta em que toda a gente entra, como dizia D. Francisco Manuel de Melo, autor muito do meu afecto. Vejo as capas e as primeiras páginas no quiosque frente ao restaurantezito onde como e passo à frente. As prosinhas do PÚBLICO aparecem hoje na Visão, onde sempre me trataram com extrema delicadeza. Há pouco abri um exemplar e dei com umas tantas frases acerca de mim, estúpidas, desonestas e ignorantes: fiquei curado. É pena que os jornais, como a literatura, sejam uma estrebaria de porta aberta: devia ser reservada aos profissionais sérios, como os nomes de que há pouco falei, e que decerto existem. Conheço alguns. Estes parágrafos para o PÚBLICO são uma homenagem a esses nomes. O que me assusta é o facto de qualquer pessoa estar à mercê de criaturas medíocres, sem possibilidade de rectificar a pulhice. Faleceu oportunamente no Brasil: ao menos o Ecos de Pombal era sincero. A lebre para a esfomeada com fé: ao menos o Almanaque da Sãozinha dava esperança a quem almoça um carioca e um salgado ao balcão. Ao ficar cega a sua existência ganhou sentido: ao menos as Selecções do Reader's Digest animavam os que tropeçam. Se tornar a meter o olho entre páginas e receber sinceridade, esperança e sentido com certeza que lerei. E se o testículo de João for o testículo de António, então, juro, não perco uma sílaba. Desde miúdo que me dá vontade de abrir os brinquedos, a verificar como funcionam. E tenho um par de tais apêndices de que ignoro o mecanismo e nos quais suspeito
(não estou seguro)
que não existem parafusos nem roscas. Foram um presente dos meus pais e como quase tudo em mim continuam a ser um mistério. Devíamos vir com manual de instruções, como os electrodomésticos."
António Lobo Antunes, in Público

segunda-feira, 2 de março de 2009

In Memoriam

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Um poema de Antero de Quental para assinalar as duas perdas destes últimos dias...
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Na Mão de Deus

Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.
Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depois do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.
Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,
Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!
Antero de Quental, in "Sonetos"

Livro(s) do mês - Março

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Mês dedicado a José Eduardo Agualusa
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Nação Crioula conta a história de um amor secreto: a misteriosa ligação entre o aventureiro português Carlos Fradique Mendes - cuja correspondência Eça de Queiroz recolheu - e Ana Olímpia Vaz de Caminha, que, tenha nascido escrava, foi uma das pessoas mais ricas e poderosas de Angola. Nos finais do século XIX, em Luanda, Lisboa, Paris e Rio de Janeiro, misturam-se personalidades históricas do movimento abolicionista, escravos e escravocratas, lutadores de capoeira, pistoleiros a soldo, demiurgos, numa luta mortal por um mundo novo. (Sinopse da wook)
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Este texto parte de uma viagem que o escritor fez, entre 8 e 29 de Abril de 2001, a convite da Dra. Helena Vaz da Silva, presidente da direcção do Centro Nacional de Cultura: "percursos em busca da presença portuguesa pelo mundo". Partindo do Prefácio de Guilherme d’Oliveira Martins, como se pode ler neste texto de José Eduardo Agualusa, "mais importante do que as invocações históricas, e do que as rememorações do passado, o que deve é entender-se o país e as gentes dos dias de hoje. De nada valeria a recordação da História sem uma interrogação efectiva (e uma análise) sobre o presente. Recusaríamos as razões do diálogo espiritual e de culturas se nos satisfizéssemos com o passado - esquecendo que os mortos devem enterrar os seus mortos". Este é um belíssimo livro onde Agualusa nos leva a redescobrir uma região a que os portugueses estão unidos por muitas antigas raízes - a presença portuguesa foi efectiva por cerca de 150 anos (1512 a 1769) e a ligação a Timor manteve-se até ao século XX. (Sinopse da wook)
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