segunda-feira, 30 de março de 2009

"A choldra ignóbil" ou o Portugal de Eça

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Na revista Pública deste Domingo, a crónica de José Eduardo Agualusa evoca Eça e a sua obra-prima, Os Maias, através de João da Ega. Tudo a propósito do gosto dos portugueses em maldizer o seu próprio país:
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A relação dos portugueses com Portugal é um pouco assim. Desvirtuar o país, comparando-o com a suposta grandeza de outros, faz parte, desde há gerações, da cultura nacional.
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Suponho que para um estrangeiro isto possa confundir-se com desamor. Grave equívoco: para um português, maldizer a pátria é uma forma superior de patriotismo.
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Tudo isto está n' Os Maias. Aliás, o que de mais profundo sei sobre Portugal aprendi com Eça de Queiroz. Oiçamos João da Ega, cruel alter ego do autor: "Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima com os direitos da alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas... Nós julgamo-nos civilizados como os negros de S. Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão... Isto é uma choldra torpe."
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Uma outra personagem vai mais longe: "Querem dizer agora que isto por fim não é pior que a Bulgária. Histórias! Nunca houve uma choldra assim no universo!"
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E no entanto, a determinada altura, o próprio Ega reconsidera, num súbito entusiasmo nacionalista: "Clamamos por aí, em botequins e livros, 'que o país é uma choldra'. Mas que diabo! Porque é que não trabalhamos para o refundir, o refazer ao nosso gosto e pelo molde perfeito das nossas ideias?... Vossa excelência não conhece este país, minha senhora. É admirável! É uma pouca de cera inerte de primeira qualidade. A questão toda está em quem a trabalha. Até aqui a cera tem estado em mãos brutas, banais, toscas, reles, rotineiras... É necessário pô-la em mãos de artistas, nas nossas. Vamos fazer disto um bijou!"
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Portugal já é um bijou. Lisboa, em particular, tem vindo a transformar-se numa das cidades mais simpáticas da Europa. Em primeiro lugar há a luz: uma matéria suave e perfumada, que apazigua o espírito. Desembarcar no aeroporto da Portela, numa manhã de Inverno, vindo de uma qualquer cidade europeia mais a norte, é como emergir de um poço de águas escuras. A mim, a luz devolve-me a respiração.
José Eduardo Agualusa, in Pública

1 comentário:

auxília disse...

A propósito de luz, lembrei-me de um poema de Sophia:

Largos longos doces horizontes
A desdobrada luz ao fim da tarde
Um ar de praia nas ruas da cidade
Secreto sabor a rosa e nardo arde

in "Ilhas"

Que a "luz" se desdobre por estes dias de férias para que todos possamos também dizer "A mim, a luz devolve-me a respiração."
Boas férias!