Menina e Moça
Ela não esqueceu nunca o
tempo em que era uma camponesinha descarada que dançava debaixo de avelaneiras
em flor. Ri facilmente e, ao menos pretexto, tira os sapatos, prende as saias
com a mão, parte outra vez ao encontro da sua natureza que aceita mal a convenção
e os arrebiques. Tem o latim por pai, é certo, mas um pai com barba vagabunda,
alheio à higiene e às declinações. Herdou das mouras uma certa languidez, essa
demora no olhar que indica a predisposição para o descuido nos pormenores mais
práticos da vida. Atravessou-a o espírito dos Celtas. Está visto que haveria de
nascer versejante e com algum defeito de maneiras. Creio eu que, como em todas
as moçoilas, lhe resulta o desleixo em sedução.
Não se ajeita a
discursos, a não ser que pisque o olho e sopre malandrice, sermoneando ao peixe
em vez de ao homem, para que o homem se sinta mas não possa acusar o envio da
censura. Mesmo no grande épico lusíada, vemos Camões a rir daquele marinheiro,
Veloso de seu nome, que desceu em muito menos tempo do que o tinha subido um
outeiro que escondia nativos assanhados. Por efeitos de história e crescimento,
civilizou-se um pouco, entrou na corte, fez vénia às muitas modas chegadas do
estrangeiro. Viu-se que sufocava no espartilho e que as anemias literárias, se
vão bem com a frágil compleição das inglesas, só conseguem, à nossa,
encardir-lhe as feições.
Grandes amores teve ela
com Mestre Gil Vicente e foi esse um enlace sem igual na duração e na
intensidade, e, mais, sem nunca um do outro se enjoarem, antes encherem de
apalpões e viço as deprimidas salas palacianas. Mesmo nas ligações com gente
lacrimosa, como era o caso de Camilo Castelo Branco, lhe escapa muita vez o
estilo ao romantismo para retornar à mão em anca e à chacota. Se eu quisesse
ser má, avançaria que não é ilusão das sombras este buço que vemos encimar-lhe
o lábio superior. tem uma exuberância de corpo que não leva ao feminismo porque
não precisa de ver filosofada a sua força. Há nela aquela espécie de ardor
matriarcal que fez com que as melhores das nossas heroínas fossem bastante mais
impiedosas do que qualquer guerreiro experimentado.
[...]
Saiu para além do mar com os marinheiros, mas
não entendeu nada do Império. O que quis foi dançar e misturar-se. Enquanto
eles degolavam e ofendiam, ela deitou-se na frescura das palhotas e gerou
promissoras combinações da espécie. Enquanto a missa e a lei teimavam no latim,
ela, a menina do descaramento, espalhava as filhas pelo mundo fora, numa alegre
e opulenta sementeira. Abriu os braços a fonemas e a deuses que eram até então
estrangeiros e hostis mas nela se deixaram docemente fundir.
Enquanto a nobreza
degenera, por secagem do sangue doçarias, a nossa mocetona continua trocando
afeto em terra de África e Brasil, tomando e oferecendo, e outro não é o
segredo da sua juventude. [...]
Hélia
Correia, 12-06-1997, in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa (texto com
supressões)