domingo, 11 de janeiro de 2015

Ana Luísa Amaral no Colégio




A escritora Ana Luísa Amaral visitou-nos, a convite dos professores Hélder Moreira e Alexandra Martins. Falou de poesia, de clássicos da literatura, da sua forte ligação com a palavra...

Deixamos o poema que leu, como só ela o sabe fazer, e duas fotos que testemunham a sua presença.


Passado

Ah velha sebenta
em que escrevia as minhas composições de Francês
“Mes Vacances”: gostei muito das férias
je suis allée à la plage (com dois ee,
o verbo ètre pede concordância), j’ai beaucoup
nagé e depois terminava com o sol a pôr-se
no mar e ia ver gaivotas ao dicionário

As correcções a vermelho e o Passé Simple,
escrever cem vezes nous fûmes vous fûtes ils fúrent
as tardes de sol
e Madame Denise que dizia Toi ma petite
com ar de sargento e a cara zangada a fazer-se
vermelha (tenho glóbulos a mais, faites attention)
e o olhar que desmentia tudo
em ternura remplit

E as regras decoradas e as terminações
verbais a i s, a i s, a i t,
a hora de estudo extra e o sol de fim de tarde
a filtrar-se pelas carteiras,
a freira a vigiar distraída em salmos
eu a sonhar de livro aberto
once upon a time there was a little boy
e as equações de terceiro grau a uma
incógnita

Ah tardes claras em que era bom
ser boa, não era o santinho nem o rebuçado
era a palavra doce a afagar-me por dentro,
as batas todas brancas salpicadas de gouache
colorido e o cinto azul que eu trazia sempre largo
assim a cair de lado à espadachim

As escadas de madeira rangentes
ao compasso dos passos, sentidas ainda
à distância de vinte anos,
todas nós em submissa fila a responder à chamada,
“Presente” parecia-me então lógico e certo
como assistir à oração na capela e ler as Epístolas
(De São Paulo aos Coríntios:
Naquele tempo...),
tem uma voz bonita e lê tão bem, e depois
mandavam-me apertar o cinto para ficar
mais composta em cima do banquinho,
à direita do padre

E o fascínio das confissões,
as vozes sussurradas na fina teia de madeira
castanha a esconder uma falta,
o cheiro do chão encerado e da cera das velas
e quando deixei de acreditar em pecados
e comecei a achar que as palavras não prestam
e que era inútil
inútil a teia de madeira

Ah noites de insónia à distância de vinte anos,
once upon a time there was a little boy
and he went up on a journey
there was a little girl, une petite fille
e o passé simple, como parecia simples o passado

Au clair de la lune
mon ami Pierrot
Prête-moi ta plume
pour écrire un mot

Escrever uma palavra
uma só
ao luar
a pedir concordância como uma carícia
Elles sont parties,
les mouettes